sexta-feira, 24 de setembro de 2010

helena david.

Helena David era minha tia. Era, assim no passado, porque ela morreu. E continuando no pretérito, porque na minha concepção de universo, ela não existe mais, seja aqui ou em qualquer lugar. Não. Minto. Ela habita minhas memórias e as de muitos que ela conviveu.
Leninha, como todos a conhecíamos, sempre me disse que eu era seu sobrinho preferido. Que me perdoem os outros, mas eu ouvi isso da boca dela algumas vezes. Pode até ser que ela falava o mesmo para todos. Do jeito que ela era sapeca, não duvido.

O que eu gostava mais da minha relação com a (tia) Leninha era que ela, apesar de ser mãe do Pedro, parecia minha avó. Não por ser "gorda, chata e velha", como ela sempre dizia, e sim, por não se preocupar em educar e sempre fazer traquinagens que uma mãe se recusaria a fazer com o filho.

Claro que tenho muitas lembranças dela guardadas no meu subconsciente, mas a primeira que vem a mente é de um Natal que passamos todos da família David em um sítio. Todos os sobrinhos queriam ir no carro com a "tia legal". E realmente fomos todos. Eu, com 13 ou 14 anos, me lembro muito bem da festa que foi a ida. Lembro também dela tocando o Hino Nacional inteiramente com todos nós cantando e ela improvisando com a buzina. O resto de tudo deste fim de ano, salvo algumas outras memórias, se perderam na minha cabeça.

Leninha, sempre foi também muito hospitaleira, no verão de 2000 ou 2001, passei um mês em Belo Horizonte, cidade onde residia, em sua casa, ali no bairro do Luxemburgo. Um apartamento muito aconchegante, cheio de todas as parafernálias de bom gosto, que ela juntou nos tantos anos de vida e nas suas tantas viagens. Assistíamos muitos filmes - o cinema era uma paixão em comum, comi muito de sua comida deliciosa (que merece um outro parágrafo) e passeios muito especiais.

Ela não era uma mestre-cuca, mas como boa mineira, cozinhava muito bem. Todos os tipos de prato. Seu pão de queijo era uma delícia e depois que ela foi morar na Espanha, aprendeu outras receitas, como o pão com tomate que ela me ensinou a fazer ou a fideuá (um prato típico da região onde morava naquele país).

Já passando para essa nação ibérica. Quando decidi sair do Brasil, muito da minha escolha pela Espanha foi o fato dessa tia tão querida e tão fofa já viver ali. Ela morava em Valencia, a terceira maior cidade, cheia de história, assim mesmo como ela gostava. Foi pra lá fazer um doutorado sobre a restauração das pinturas ruprestres nas cavernas brasileiras. Algo que ninguém nunca tinha feito. Quando eu disse a ela que eu queria era morar em Madri, a capital, me lembro que ela ficou muito chateada, achando que eu não queria ficar com ela, o que não era verdade, tanto que eu não conheci nada daquele país, porque todas as minhas viagens, quando me sobrava um dinheirinho, eu ia visitá-la. E depois de tantos anos sem vê-la, o primeiro abraço que a gente deu, quando ela foi me buscar na estação de trem, foi tão gostoso e tão confortante, principalmente porque eu era um estrangeiro ali, ela também, e o que a gente mais sente falta quando está longe do nosso país é de um carinho familiar.

Todos as minhas idas à Valencia foram muito boas, nada a reclamar. Houve um Natal que passamos juntos, na casa de uma brasileira que namorava um egípcio. Teve a vez que fomos ao estádio de futebol assistir o time da cidade. Passamos um Reveillon juntos também com todos os seus amigos gays. Ela me levou para visitar muitos museus, me contou histórias que se passaram naquela rua e caminhamos na praia, colocando os pézinhos na areia. Andamos de roda-gigante e tiramos fotos verdes, por causa da luz do vagãozinho. E a primeira vez que tomei absinto, ela estava presente e me acompanhou, foi muito divertido e ficamos bem bêbados.

Agora, a vez mais especial de todas que eu fui até lá, foi com o Diego, meu então namorado. Ela tinha me dito, a princípio, que ele só podia ficar na casa dela uma ou outra noite e no final, eles se adoraram e ele ficou lá em toda nossa estada. Nossa, como nos divertimos, os três. Principalmente porque fomos, quase todas as noites, para o bingo jogar. Não ganhamos nenhuma vez (ou talvez, em uma delas, completamos uma linha, não sei), mas valeu risadas eternas. Ah, Leninha, que saudades!

Essa talvez tenha a sido a última vez que a vi antes de ficar doente. Só fui a reencontrar já no Brasil, carequinha e... linda. Estava mais magrinha, com o nariz fino, a cabeça raspada e, apesar do abatimento com todo o tratamento de câncer, muito bonitinha. Confesso que foi um choque a ver assim. Mas nada mudou a generosidade dessa minha tia. Toda frágil, mas ainda muito fofa.

Abril de 2010. Fui de visita para o Brasil, depois de 2 anos e meio morando na Europa. Não poderia deixar de ir a Belo Horizonte, encontrar a Leninha que estava doente. Tinha que passar por ali. Me hospedei em sua casa, aquela mesma cheia de detalhezinhos e bugigangas e adereços, porém em outro endereço. Leninha não mudou o humor, não alterou seu charme e continuava cozinhando bem (um dos dias, fez um ravioli recheado, delicioso), porém estava mais apagadinha. Triste ver uma pessoa que a gente ama tanto sofrendo de uma maneira tão cruel. É algo injusto morrer assim: a pessoa passa pela vida, fazendo coisas maravilhosas, alegrando tanta gente e usando seu trabalho para ajudar os outros e, de repente, se vai de forma tão má. Foi isso que me deixou mais infeliz. Eu amava essa tia muito e sinto dor porque sei, racionalmente, e tenho certeza, que eu nunca mais vou falar com a Leninha. Nunca mais. Nunca. E isso me faz sofrer mais ainda. Porque se eu acreditasse que ela está no céu ou que ela pode me ver, eu teria esperanças de um dia a reencontrar. Mas eu tenho certeza que não. Então, o que me resta é ter essas lembranças, guardar as memórias boas dessa pessoa que me foi tão especial quando tinha vida, para que ela continue viva dentro de mim.

2 comentários:

pm disse...

: (

Anônimo disse...

Chorei sim, vc tinha razão...chorei de saudades, ainda vou chorar muito, muito. Leninha, insubstituível, inesquecível...Chorei também de orgulho de sua sensibilidade, meu amor, meu chico...meu querido. Lindo seu texto, lindas lembranças. Linda homenagem!